Encélado talvez suporte vida, mas não se empolgue
Dados da sonda Cassini revelam que Encélado possui fósforo, elemento essencial para a vida, que pode ser muito rudimentar na lua de Saturno
Encélado é a sexta maior lua de Saturno, e assim como em Europa, cogita-se haver um vasto oceano sob uma grossa camada de gelo, dadas evidências geológicas captadas em expedições.
Uma delas, a sonda Cassini enviou dados e imagens muito interessantes em sua missão, que os cientistas estão até hoje estudando e revelando. A mais recente novidade indica que Encélado possui fósforo, o mais raro dos seis elementos essenciais para a manutenção da vida, como a conhecemos.
Claro, como este é o Meio Bit você sabe, nossa regra é sempre ir devagar com o andor, ao contrário dos caça-cliques que estão divulgando a plenos pulmões que Encélado pode ter vida. Sim, TALVEZ tenha, mas nada é tão simples.
Disclaimer:
Eu sei que o termo correto é satélite natural, Lua é só a nossa, mas a comunidade científica usa "lua" com letra minúscula por questões práticas, e o farei aqui também.
O que Encélado tem
Embora Europa e Encélado sejam bem parecidas, apenas na lua de Saturno já foram observadas ejeções de plumas (colunas) de água, na região polar, graças à intensa atividade geológica. Não tanto quanto em Io, claro, mas as coisas são bem agitadas por lá.
O telescópio James Webb captou recentemente um dos registros mais impressionantes do fenômeno, uma coluna de 9,6 mil km, 19 vezes maior que o diâmetro de Encélado (504 km), quase a distância entre São Paulo e Zurique, na Suíça.
A missão Cassini-Hyugens enviou, entre 2004 e 2017, toneladas de dados das luas de Saturno, antes de mergulhar com estilo em Titã, no fim de sua jornada. Cientistas continuarão analisando seus dados por bastante tempo, descobrindo novas particularidades desses satélites naturais, como é o caso.
Em um artigo (cuidado, PDF) publicado na Nature, um time internacional de pesquisadores detectou a presença de fósforo, na forma de fosfatos, nas plumas de Encélado, algo já considerado em estudos passados, mas nunca confirmado. A atividade geotérmica, aliada à grande concentração de água e outros elementos, tornaria o ambiente propício à formação de moléculas autorreplicantes, os tijolos da vida.
O fósforo é particularmente importante, por ser o mais raro dos seis elementos básicos, os demais carbono, hidrogênio, oxigênio, nitrogênio e enxofre, todos detectados anteriormente no satélite.
O fósforo é o componente principal da molécula de DNA, bem como de membranas celulares e do trifosfato de adenosina, ou ATP, responsável por armazenar energia em ligações químicas.
Segundo a Dra. Morgan Cable, astrobióloga do NASA JPL, a descoberta remove grandes obstáculos para o surgimento da vida da forma que reconhecemos como tal em Encélado, sendo que com a presença do fósforo e uma fonte de energia presente, todos os componentes para reações bioquímicas, como demonstrado pelo experimento de Miller-Urey, estão em seus lugares.
O experimento em si demonstrou que, dadas as condições ideais e todos os elementos básicos estejam presentes, a formação de cmoléculas complexas se dá em questão de horas. Talvez por isso a vida na Terra tenha surgido tão cedo, apenas (na escala cósmica) 260 milhões de anos após a formação do planeta.
Então há vida em Encélado?
Talvez, sim, talvez não. A possibilidade existe, mas há alguns fatores que devem ser considerados. O primeiro e mais crítico é a ausência de luz solar, ao menos em uma medida suficiente para suprir energia para organismos capazes de realizar fotossíntese.
Na Terra, onde o Sol é abundante, a Evolução se baseou nesses organismos, de cianobactérias (algas azuis) a plantas, como a base da cadeia alimentar; eles sustentam formas de vida "herbívoras" rudimentares, que por sua vez servem de alimento a outros, que predam os demais.
Sem luz do Sol, a energia externa necessária para que os processos bioquímicos, que criam moléculas complexas, vem exclusivamente da atividade geotérmica, muito provavelmente de vulcões submersos, que fornecem o calor necessário.
O outro fator é a composição do oceano de Encélado: diferente dos mares da Terra, ricos em cloreto de sódio, a base do sal de cozinha, o da lua de Saturno possui uma grande concentração de sais de sódio, o que inclui NaHCO3, o bicarbonato que você usa para fazer pão.
Segundo Cable, o oceano gelado de Encélado pode perfeitamente abrigar formas de vida, que venham a se desenvolver de modo similar à da Terra, mas se houver algo lá, dada a falta de luz do Sol e a baixa disponibilidade de energia externa, o provável é que ela se limite a microorganismos, ao invés de seres macrocelulares mais complexos, como os possíveis equivalentes locais de moluscos, invertebrados e peixes.
"Se observarmos a quantidade de energia disponível lá, em comparação à fornecida pelo Sol, a primeira está ordens de magnitude abaixo (...). Isso significa que (Encélado) é capaz de suportar uma comunidade de micróbios, ou um punhado pequeno de organismos complexos famintos."
Cable diz que há, sim, a possibilidade de animais similares aos da Terra existirem por lá, mas quanto mais complexos, menos abundantes eles seriam, sem contar que todos invariavelmente seriam predadores. E completa que mesmo uma baleia poderia viver lá, mas...
"Ela seria uma baleia solitária, cantando uma canção triste para si mesma. O quão terrível seria isso?"
Infelizmente, não existem planos concretos no momento para visitar Encélado e verificar o que há debaixo de todo aquele gelo; há uma recomendação para que uma missão seja organizada para daqui a uma década, já que outras luas têm prioridade.
A NASA irá lançar em 2024 a missão Europa Clipper, que visitará o satélite de Júpiter, enquanto a ESA já enviou a sonda Jupiter Icy Moons Explorer, ou JUICE, que estudará a mesma lua, mais Ganimedes e Calisto.
Em comum, tanto a Clipper quanto a JUICE não possuem módulos de pouso, logo, não tocarão na superfície de Europa.
Afinal, ninguém quer contrariar o Monólito.
Referências bibliográficas
POSTBERG, F., SEKINE, Y., KLENNER, F. et al. Detection of phosphates originating from Enceladus’s ocean. Nature, Volume 618, edição 7.965, 24 páginas, 14 de junho de 2023. Disponível aqui.