UE: empresas tech locais não curtiram Lei de IA
Carta aberta de empresas tech europeias afirma que Lei de IA da UE é prejudicial à competição, e favorece concorrentes externas
A União Europeia (UE) se prepara para implementar a Lei de IA, que regulariza o uso de soluções generativas e algoritmos de Inteligência Artificial, em diversos casos de uso, em todo o bloco.
Como as três partes do governo (Parlamento, Comissão e Conselho) aprovaram o rascunho inicial, resta apenas refinar o texto e votar, o que a essa altura é uma mera formalidade.
O pacote desagradou companhias tech em todo globo, em que muitas citam que a legislação diminui a competitividade e expõe as mesmas a litígios (foi intencional, na verdade), só que as empresas de tecnologia locais também não estão curtindo a nova lei.
UE vs. IA
O texto pré-aprovado (cuidado, PDF) recebeu elogios de órgãos de defesa dos direitos humanos, referente ao trecho em que proíbe o uso de algoritmos para vigilância em tempo real, mesmo por órgãos estatais de segurança, como a polícia.
A única exceção prevista se dá em casos de ameaça à segurança do bloco (terrorismo, por exemplo), e mesmo assim, o uso é permitido apenas com conteúdos pré-gravados, que só podem ser acessados com uma ordem judicial expressa.
Por outro lado, a UE pegou pesado com IAs e algoritmos generativos como ChatGPT, Stable Diffusion, Google Bard, Copilot e Cia. Ltda., em parte, motivada pelo rolo na Itália.
Na ocasião, o entendimento foi de as empresas usaram conteúdos protegidos por direitos autorais para treinar seus modelos generativos, não protegiam adequadamente os dados dos usuários, e seus produtos podiam ser usados para criar desinformação, ou prejudicar/influenciar indivíduos, como o Deepfake (que é descentralizado, mas se enquadra também).
Não demorou para que a UE tivesse a mesma interpretação, e fizesse alterações na proposta da Lei de IA, apresentada originalmente em 2021, e o Martelo da Lei desceu com força total.
As companhias ficam obrigadas a:
- Revelar publicamente todos os conteúdos usados no treinamento de seus algoritmos, sejam de domínio público ou protegidos por copyright;
- Identificar todos os produtos gerados, sejam imagens, texto, vídeo, jogos, etc., que usaram IAs no desenvolvimento, o que deve ser feito agora, a UE não vai esperar a Lei entrar em vigor;
- Não criar obras de IA derivativas de conteúdos protegidos por direitos autorais;
- Serem explicitamente claras sobre o tratamento dos dados de usuários, e proteger os mesmos.
A parte onde as empresas são obrigadas a revelarem as fontes usadas no treinamento de IAs foi colocada de propósito, pois a estas coletaram o máximo de material possível na internet, protegido por copyright ou não, e não se incomodaram de pagar os direitos cabíveis.
A Getty Images, por exemplo, está processando a Stability AI, empresa responsável pelo Stable Diffusion, por esta usar seus conteúdos sem pagar, enquanto seu software prejudica seus negócios; afinal, gerar uma imagem genérica com IA, para ilustrar textos de blogs, por exemplo, não só ficou fácil como é de graça.
O site The Verge conseguiu criar imagens no serviço que exibiam a marca d'água do Getty Images, o que deixou clara a marmotagem da Stability AI.
Com as companhias ficando obrigadas a revelar suas fontes, quem fez uso de materiais protegidos para treinar suas IAs fica sujeito a processos por infração de direitos autorais, como o que a Getty Images move contra a Stability AI, e sim, é essa a intenção.
Não obstante, artistas individuais dos Estados Unidos estão movendo uma ação conjunta, na corte de San Francisco, contra Stability AI, Midjourney e DeviantArt (que usaria as artes postadas no site para treinar sua própria IA por padrão, mas depois retrocedeu), também por infração de direitos autorais, citando a DMCA.
Lei de IA prejudica competição
Fica clara a intenção da UE em usar a Lei de IA como medida para conter soluções criadas por companhias de fora do bloco, em especial de gigantes como Google (Bard), Meta (Voicebox, Make-A-Video), Microsoft (Bing), e OpenAI (GPT-4, que alimenta o Bing, ChatGPT), entre outras.
Embora os legisladores europeus tenham, como sempre, planos para que suas leis privilegiem empresas locais em detrimento das estrangeiras, ao menos neste caso, o tiro pode sair pela culatra: boa parte das grandes companhias locais acham que a lei é um problema.
Em uma carta aberta (cuidado, PDF), executivos de empresas como ARM, Siemens, Carrefour, Heineken, Airbus, Renault, TomTom, Ubisoft, Mistral AI, etc., dizem que a nova Lei "põe em risco a competitividade e a soberania tecnológica da Europa, sem efetivamente lidar com os desafios que enfrentamos agora, e enfrentaremos no futuro".
O grupo argumenta que, sob o modelo aprovado da legislação, todos os modelos de IAs, independente da aplicação, ficarão sob "pesada regulação", cuja implementação imporia riscos e custos altíssimos para as companhias locais.
De fato, o texto não privilegia em nenhum cenário o uso comercial de IAs generativas; a única exceção prevista na Lei é, justamente, seu uso em modelo de acesso aberto, ou de pesquisa, que devem ser avaliadas por órgãos da UE, e não podem cobrar pelo uso, de nenhuma forma.
Os executivos argumentam que, sendo a Lei de IA intencionalmente restritiva, as companhias externas terão mais poder competitivo, por atuarem em mercados mais permissivos, e consequentemente terem melhor aporte financeiro para se adequarem à legislação, sem que isso prejudique (muito) seus negócios.
Claro, ninguém é louco de ignorar um mercado consumidor de mais de 400 milhões de usuários conectados, que respondem por mais de 90% da população (dados de janeiro de 2022), assim, sair da UE não é uma opção; tanto Meta quanto OpenAI e Nvidia, esta a principal fornecedora de chips para IA, se comprometeram a seguir a nova legislação.
As companhias locais já entenderam que irão competir de forma desigual com as externas, pois estas têm melhores condições de se adequarem e lucrarem, enquanto oferecem produtos melhores que as soluções europeias; a UE já deixou claro que priorizou a proteção ao usuário final, e não vai apoiar soluções comerciais de nenhum tipo.
A carta aberta propõe alterações na lei, para que ao invés de enfiar todas as IAs no mesmo balaio, seja implementada uma aproximação baseada em riscos, com mais flexibilidade para estimular a inovação do setor, de forma similar à proposta do Reino Unido, que pode, ironicamente, atrair mais negócios que o continente no futuro.
Por fim, os executivos notam que alguns pontos da lei são benéficos, como a identificação de conteúdos, os testes extensivos de novos algoritmos, e mais cuidado no desenvolvimento de modelos.
Claro, a carta aberta foi minimizada pelos legisladores europeus. Em entrevista ao site Reuters, o político romeno Dragos Tudorache, co-autor da Lei de IA, disse o seguinte:
"Eu estou convencido de que eles (os executivos das companhias europeias) não leram o texto com atenção; ao invés disso, reagiram sob estímulo de alguns poucos interessados nesse assunto (mudar a Lei)."
Caso o texto seja aprovado da maneira que está (o que é quase certo que irá acontecer), a Lei de IA entrará em vigor em 2026, com grandes chances de que as mudanças influenciem regulações do setor em todo o globo, da mesma forma que aconteceu com a GDPR.